2015

A FUSÃO DOS OPOSTOS NA FENOMENOLOGIA DA PINTURA DE JOÃO DO VALE
(AMOR, LIBERDADE E POESIA) por Eurico Gonçalves

eurico-goncalves-manuscrito-1

Cópia do manuscrito de Eurico Gonçalves (pág. 1)

O seu estudo e investigação sobre PINTURA começa por referenciar CÉZANNE que, ao interpretar a natureza através da geometrização da pincelada certa, rectilínea e estrutural, é um Precursor da visão multifocal do espaço multifacetado do Cubismo Analítico de PICASSO e BRAQUE, próximos das Composições Abstractizantes de BEN NICHOLSON. Por seu turno o Expressionismo Fauve de Van Gogh e o Simbolismo de Gauguin exaltam a cor táctil, sensual e contrastante, que se contrapõe à serena contemplação da cor-luz nas composições figurativas e cenográficas de FRA ANGELICO, no século XV, mais agitada e teatral em TICIANO. Tal interpretação faz-me pensar na conjugação dos opostos como o Romantismo e o Classicismo, o gesto impulsivo e a geometria, a deformação intencional do Expressionismo e a necessidade de reencontrar uma certa ordem no Construtivismo Abstracto Lírico.
A PINTURA DE JOÃO DO VALE é sensível à conjugação dos opostos. “Duas idades tem o Desenho: a primeira é espontânea e a segunda procura uma certa ordem: é clássica” – ALMADA NEGREIROS. Já o Poeta Surrealista ANDRÉ BRETON afirma: “A BELEZA É CONVULSIVA OU NÃO É BELEZA”, o que se opõe à visão neoclássica do Impressionista SEURAT que quis fazer da Arte uma Ciência: “DUVIDAI DA BELEZA QUE NÃO É SERENA”. Na sequência de VAN GOGH, o Expressionista KIRCHNER acentua a figuração angulosa e distorcida com cores vivas e contrastantes, rebatidas no plano do suporte, tal como o fauvista Matisse, autor de composições ornamentais e festivas.
A PINTURA DE JOÃO DO VALE tanto é gestual, impulsiva e informal, estabelecendo por aí uma relação com o Automatismo Psíquico Surrealista que, segundo BRETON, “revela o real funcionamento do Pensamento” ou “os dados imediatos do inconsciente”, na concepção de “arquétipos elementares”, ao alcance de qualquer mão, como também é simplificada e depurada, recuperando a cor lisa e contrastante de MATISSE e a monocromia de ROTHKO e YVES KLEIN, ambos próximos da filosofia ZEN: “SENTIR A ALMA SEM A EXPLICAR, SEM VOCABULÁRIO, FOI TALVEZ ISSO QUE ME CONDUZIU À NOÇÃO DE MONOCROMIA” – YVES KLEIN.
Para JOÃO DO VALE, A PINTURA é uma maneira de sentir a Cor, a Forma, a Estrutura e o Espaço Envolvente. A sua Cor Sensorial oscila entre o informal e o geométrico, na concepção de Composições Emblemáticas, não alheias a inquietações profundas, que dissolvem parcialmente a rigidez dos contornos. Tudo flui nesta Pintura Atmosférica de cor-luz, que invade o espaço.
No caso de JOÃO DO VALE, “VALE A PENA CONTINUAR A SONHAR/ IMAGINAR O QUE A PINTURA REVELA COM INESPERADA E SURPREENDENTE AUDÁCIA”. O Pintor envolve-se inteiramente nesta AVENTURA POÉTICA E ESTÉTICA. Costumo dizer que “A PINTURA É O MEU ESPAÇO DE LIBERDADE”. Na pintura de João do Vale, as figuras são vultos humanos fantasmáticos, paisagens e arquiteturas, quadrados e rectângulos, janelas e portas, o sol negro e o céu azul, súbitas aparições e construções. A luz e a sombra vislumbram-se na penumbra. Tudo surge e ressurge em sobressalto, como prelúdio de uma nova visão. A terra, o mar, o céu, o infinito.

“Nunca por nunca ser, a Pintura está em crise” – Mário Cesariny.
“Queria de ti um país de bondade e de bruma. Queria de ti o mar de uma rosa de espuma”.
“Um pouco mais de sol eu era brasa.
Um pouco mais de azul eu era além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa
Se ao menos eu pudesse permanecer aquém” – Mário Sá-Carneiro.

Na visão espectral das formas e das cores, a Pintura de João do Vale é feita de luz e sombra, que suscitam fascínio e mistério. “A ARTE SEM SOMBRA NÃO TEM MISTÉRIO. E O QUE EU GOSTO É DE MISTÉRIO” – Cruzeiro Seixas.
A Pintura de João do Vale pulsa como um ser vivo.
Nesta perspectiva, vale a pena referir a função terapêutica da Arte numa relação com a Loucura e a Saúde Mental.
“A ARTE É COISA MENTAL” – Leonardo da Vinci.
“A ARTE É A BOA SAÚDE” – Yves Klein.
“QUEM ENCONTROU A ARTE ESTÁ MEIO CURADO OU NO CAMINHO DA CURA” – Nadir Afonso.
A função terapêutica da Arte consiste em “DESBLOQUEAR A MENTE DE TODOS OS PRECONCEITOS” que impedem de “VER, NA SUA PUREZA MÁXIMA, O FACTO VIVO DA EXPRESSÃO LIVRE, SEM CORRECÇÃO NEM RETOQUE”.
A Loucura Lúcida do Artista revela o que, até então, permanecia oculto ou recalcado por normas de comportamento demasiado rígido, autoritário e asfixiante.
A Poética do Maravilhoso manifesta-se desde a Infância e prolonga-se ao longo da vida. Artistas Modernos próximos da Infância são Miró e Paul Klee, pintores de signos que evocam o ideografismo infantil. A pintura pormenorizada e encantatória do “naïf” Henri Rousseau e o Surrealismo Onírico de Chagall estabelecem uma imediata relação com a Nova-Figuração narrativa de Paula Rego, inspirada em fábulas e histórias de encantar. Como notável Desenhador Expressionista-Cubista, Picasso declarou: “APRENDO IMENSO VENDO UMA CRIANÇA A DESENHAR”.
Em defesa da Arte Bruta da Criança, antes de ser escolarizada, o pintor autodidata JEAN DUBUFFET afirma: “DESENHO INTENCIONALMENTE COMO UMA CRIANÇA, COM A DIFERENÇA DE TER PERNAS MAIORES, DAR PASSOS MAIORES E PODER IR MAIS LONGE”.
O primeiro Espaço da Pintura é o Espaço Topológico, ao ponto de outro pintor autodidacta, JOAQUIM RODRIGO, afirmar no seu livro “Pintar Certo”: “A PINTURA ESTAVA CERTA. INVENTARAM A PERSPECTIVA, ESTRAGARAM TUDO COM A ILUSÃO D’ÓPTICA, QUE PRETENDE REPRESENTAR VOLUMES E PROFUNDIDADES NUMA SUPERFÍCIE PLANA”.
A Arte Moderna, nos melhores casos, não só recupera o Espaço Topológico e a Inocência Original da Criança e do Primitivo como também a Alegria de Viver que, através da extrema pureza de meios expressivos, conduzem à Grande Libertação do Homem, segundo a Filosofia Zen:

“Nada teu exagera ou exclui
Sê todo em cada coisa
Põe quanto és no mínimo que fazes” – Ricardo Reis.
“Sinto uma grande Alegria quando penso que a minha morte não tem importância nenhuma” – Alberto Caeiro.
“Alberto Caeiro é o meu Mestre. Ricardo Reis escreve melhor do que eu” – Fernando Pessoa.
“Desenho, pinto para me descondicionar” – Henri Michaux.
“Foi a despintura que me ajudou a desregrar e a desmembrar a linguagem dos meus versos” – Mário Cesariny.
Eu próprio fiz despinturas, descolagens e desdobragens, chamando a atenção para a importância do prefixo des que, segundo o Zen, “é pela negação do sinal que se cria um novo sinal”.

Novembro 2015      Eurico Gonçalves

eurico-goncalves-manuscrito-2

Cópia do manuscrito de Eurico Gonçalves (pág. 7)


logo_cabec3a7alho_wordpress_600x2002

ENTREVISTA: INCUBADORA DE ARTISTAS, 18 DE AGOSTO DE 2015:

http://incubadoradeartistas.com/2015/08/18/entrevista-com-joao-do-vale/:

IA- Quando pensa na pintura ao longo da História da Arte, quais foram os grandes momentos de viragem?

JV- Muitos momentos foram importantes mas, a meu ver, os mais transformadores foram o Renascimento e o Modernismo. O primeiro pela construção do visível, o segundo pela apresentação do invisível.

IA- O que não pode faltar durante o seu processo criativo?

JV- Se olhar o meu processo como um todo, desde a concepção ao acabamento, muitos elementos são postos em relação, não apenas os psicológicos. Há sempre uma relação fenomenológica entre o interior – o que é pensado e desejado – e o exterior – a parte visível e possível. Há sempre uma certa dose de determinação em seguir a ideia, mas também uma certa dose de acaso, que pode vir a alterar a ideia quase por completo. Alguns momentos da pintura acabam também por ser absolutamente experimentais porque quero sempre poder surpreender-me com algo que nunca tinha feito até àquele momento e isso torna tudo mais interessante. Tudo depende muito da matéria e dos materiais e do que posso fazer com eles. Outros elementos são: força, energia, dedicação absoluta, obsessão e a crença quase religiosa ou mágica de que aquilo que faço virá a modificar o mundo, não sugerindo-lhe uma política, mas adicionando-lhe uma poética. Há também muito a “colagem” de elementos não físicos à pintura, como memórias literárias variadas que contribuem para a poética geral do trabalho.

IA- As pinturas apresentadas na exposição “Figuras e outras Mitologias” reuniu trabalhos de 2004 a 2015, o que mudou no seu trabalho ao longo destes 11 anos?

JV- Por um lado espero que muita coisa, por outro lado espero que quase nada. A meu ver trabalhos antigos têm exactamente a mesma força que trabalhos mais recentes, de modo que é possível organizar uma exposição retrospectiva sem perder nada das características essenciais e actuais da obra. Por outro lado, os trabalhos mais iniciais – estou a pintar desde mais ou menos 2000 – são reveladores de uma pesquisa mais acidental e confusa, onde a matéria ainda faz mais ou menos o que quer. São trabalhos mais livres, menos conceptuais onde o acaso tem mais força. A minha pintura tem vindo a progredir para uma maior certeza e um maior domínio técnico. Tenho mesmo a sensação que agora domino largamente toda a minha técnica e todo o meu gesto e que posso fazer da pintura quase tudo o que eu quiser. Mas curiosamente, trabalhos mais recentes tendem a apresentar-se com uma maior simbologia. Talvez isso resulte da tal crença mágica na possibilidade interventiva da pintura e na determinação em transmitir a mensagem. Anteriormente não havia uma mensagem determinada, mas uma configuração de forças materiais quase alquímicas reunidas sobre tela ou madeira. Actualmente tornei-me mais obcecado pelo significado, ou melhor, pelo forte sentido que a pintura pode revelar. Mas a crença continua lá.

IA- Por que a Incubadora de Artistas foi escolhida para realização da exposição?

JV- Porque o projecto da Incubadora parte de uma ideia muito interessante e tem revelado artistas de qualidade excepcional. Um projecto vital para a arte contemporânea e do qual me orgulho tomar parte.

««««»»»»

IA – When you think in painting throughout Art History, which were its great turning moments?

JV – Many were important moments, but for me the most transforming were Renaissance and Modernism. The first because of the construction of the visible, the second because of the presentation of the invisible.

IA – What is it that cannot be missed during your creation process?

JV – If I look at my process as a whole, from the conception to the conclusion, many elements are put into relation, not only the psychological ones. There is always a phenomenological relation between the inside – what is thought and desired – and the outside – the visible and possible part. There is always a certain dose of determination in following the idea, but also a certain dose of chance, which can alter the idea almost in the full. Some moments of painting end up by being completely experimental because I always want to surprise myself with something I have never done until that moment and that makes everything the more interesting. It all depends a lot from matter and the materials and what I can do with them. Other elements are: strength, energy, absolute dedication, obsession and an almost religious or magic belief that what I do will end up by modifying the world, not by suggesting a politics but by adding a poetics. There is also a lot of “collage” of non-physical elements to the painting, such as various literary memoirs which contribute to the general poetics of the work.

IA – The paintings presented in the show “Figuras e outras Mitologias” are gathering works from 2004 to 2015. What changed during these 11 years?

JV – On the one hand I hope that a lot has changed, on the other hand I hope that almost nothing. For me older works have exactly the same strength that more recent works, in a way that it is possible to organize a retrospective without losing the essential and actual characteristics of the work. On the other hand, initial works – I am painting since the year 2000 more or less – are revealing of a more accidental and confuse research, where matter does what it wants, more or less. They are freer works, less conceptual, where chance has a greater part. My painting has been progressing to a greater certainty and a greater technical control. I have the sensation that I am now widely controlling my technique and my gesture and that I can do everything I want with painting. Curiously, though, recent works tend to present more Symbolism. Maybe that is a result of that magic belief in the possibility of intervention with painting and of the determination in transmitting the message. Before, there was no determined message, but a full configuration of material forces, almost alchemical, gathered over canvas or board. Now I have become more obsessed with meaning or, in other words, with the strong sense a painting can reveal. But the belief is still there.

IA – Why did you choose Incubadora de Artistas for the show?

JV – I chose it because IA’s projects starts from a very interesting idea and has revealed artist of exceptional quality. A vital project for Contemporary Art and one in which I am proud to take part.