2013

O PINTOR ENTRE DOIS MUNDOS

quantum-2004-guache-sobre-papel-sobre-tela-40-x-50-cm

Quantum
2004
guache sobre papel sobre tela
40 x 50 cm

O que convém a um pintor atual é não deixar adormecer as suas faculdades. Ele deve estar alerta, verticalmente desperto, e com uma vontade marcial de defender a posição conquistada. Ele conquistou já a sua posição no mundo e é essa posição que ele deve defender como um valor absolutamente necessário à condição humana e inteligente. Mas o pintor deve ir além da banal humanidade que o confina a participar da morte dos valores. Pode, como em Deleuze, fazer reacender os afetos e, com Nancy, depois dos afetos, as sensações. Deve ser desperto mas manter a possibilidade de dormência que é o usufruto estético. Dormir com a beleza deitada a seu lado. Incluir no sono os aspetos e as formas que constrói enquanto está acordado. Apreciar essas formas como quem aprecia um sonho aprazível como quem, com prazer, se deixa embriagar pelos muitos enigmas que excitam o sono. Que as formas do pintor sejam ainda esse enigma, que ele se reveja nelas sem muito explicar, sem muito saber mas envolvendo-se com elas como numa aventura de vida ou morte. No usufruir dos afetos, ele deve construir as sensações que o elevarão à superfície do sono. Deve estimular a alma a acordar-se a si mesma. Aí ele mantém o movimento hipnótico de estar acordado à superfície do sono que envolve o mundo. Deve ser o farol de um mundo que se deixou adormecer, deve fazer a vigília de um mundo que se engoliu a si mesmo e às suas formas e aos seus sonhos, do mundo que se sonha a si mesmo mas que se deitou e adormeceu num sono eterno do qual dificilmente despertará se não for com a sensação estética e o sentido de um novo ser, desperto e artista. Um pintor não necessita sair do seu atelier, sequer do seu quarto. O atelier ou o quarto onde descansa da refrega da pintura, da vida, são o mundo desperto que ele constrói para si, à superfície do sono do mundo descrente e inartístico. O mundo do pintor é um mundo espiritual e quase religioso. E é um mundo de filosofia, da sua própria filosofia e da sua própria fenomenologia, amadora ou iniciática. Mesmo sem saber, o pintor que luta por se manter acordado no meio de um mundo adormecido, iniciou-se na fenomenologia. Mesmo que o não saiba é um filósofo da vida quando tenta ainda acreditar que está desperto pela sua arte, que é a sua arte que mantém o mundo a respirar e não o mundo absorto, obtuso, insensível e materialista que sobrevive. Pintando, ele não tem outro modo de filosofar senão percebendo o que faz, ou seja, percebendo o mundo que com tanta convicção constrói para si. É fenomenólogo. Ao aplicar uma cor, seja o azul, ele entrega-se a esse mundo que o mantém à tona da vida. É o azul que o agarra como uma tábua de salvação primeiro, como símbolo a ostentar depois. O azul permanece na pintura entre o fundo abismal do que não existe, o azul antes de ser pintado, e a superfície absoluta sobre a qual ele se mantém, a do azul que está ali, pintando, “a amplitude variável do meu ser no mundo”. O pintor que teme o sono profundo, que receia os abismos do ser que não é, do ser que se vê por todo o lado como não-ser, daqueles que, sem beleza, se agarram definitivamente à morte que no mundo se encontra, tenta retirar do azul que pintou toda a luz que o oriente na noite escura do mundo que não é, luz de um mundo que será o seu, mundo que ele pinta e cria em contraste com o banal mundo que morre por todo o lado. Mantém-se ele no atelier observando esse azul que pintou e que o seduz e que é absolutamente significativo porque ele o pintou, porque arrancou, com esse azul, uma porção de significado a um mundo irreal onde nada existe, porque com esse gesto de pintar o azul, ele criou um momento crucial de viragem da morte para a vida, do insignificante para o significante, do material para o espiritual, do estéril para o criativo, etc. No fundo ele debate-se com a luta entre o nada e a verdade que se afirma, uma vez que o azul nada mais é senão uma porção de sensação ou uma “significação vital” ou um “tipo de comportamento” (Ponty). Que o azul possa conter esse mundo que se reconstitui a seus olhos… Reconstituição do mundo quer dizer criação de um outro mundo, de um mundo novo de que esse azul é apenas o início. Ele deposita nesse azul toda a religião futura do mundo que nele nasce. Vê aí uma teologia mas também revoluções. Vê aí a geografia de novos continentes, as fronteiras de novos países. Mas tudo isso num único momento, o de olhar o azul que ele criou, o mundo que ele recriou em beleza acordada. (…) O pintor que se afirma renegando-se, condição do ser que capitula, que adormece com os outros, que se afunda na inconsciência do mundo onde todos dormem. A pintura regressará sempre a esse outro mundo acordado para o qual caminha. A percepção é esse caminho do outro mundo, mas a solidão do pintor é a sua humanidade inacabada que dorme a pintura que não acaba.

J.V.

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THE PAINTER IN BETWEEN TWO WORLDS

What is convenient to a contemporary painter is not to let his faculties fall asleep. He must be alert, vertically awaken and with the martial will of defending the conquered position. He has already conquered his position in the world and that is the position he must defend as a value, absolutely necessary to the human and intelligent condition. But the painter must go beyond the vulgar humanity that confines him in participating of the death of values. He can, as in Deleuze, relight the affections and, with Jean-Luc Nancy, after the affections, the sensations. He must be awaken but keeping the possibility of sleepiness which is the aesthetic fruition. To sleep with beauty next to him. To include in sleep the aspects and forms which he builds when he is awake. To enjoy those forms as one who enjoys a pleasant dream, as one that, with pleasure, lets himself be inebriated by the many enigmas that excite sleep. May the forms of the painter still be that enigma, that he might see himself in them without explaining too much, without knowing too much, but involving with them in an adventure of life or death. In the fruition of the affections, he must build the sensations that will elevate him to the surface of sleep. He must stimulate the soul to awake itself. Here he keeps the hypnotic movement of being awake at the surface of the sleep that envelops the world. He must be the lighthouse of a world that has fallen asleep, he must make the vigilance of a world that has swallowed itself and its forms and its dreams, of the world that dreams itself but that has laid itself and fallen into an eternal sleep of which it will hardly awake if it is not  with the aesthetic sensation and the sense of a new being, awaken and artistic. A painter does not need to get away from his studio, not even from his room. The studio or room where he rests from the painting’s melee, from life, are the awaken world he builds to himself at the surface of a disbeliever and inartistic world. The world of the painter is a spiritual, almost religious world. And it is a world of philosophy, of his own philosophy and his own phenomenology, amateurish or initiatory. Even without knowing, the painter that fights for being awake in the midst of a sleeping world, has initiated in phenomenology. Even without knowing he is a philosopher of life when he tries to believe that he is awaken through his art, that it is his art that keeps the world breathing and not the absorbed, numb, insensitive and materialistic world that survives. By painting, he has no other way of philosophizing but by perceiving what he does, in other words, by perceiving the world that he builds for himself with so much conviction. He is phenomenologist. By applying a color (Blue, for instances) he surrenders to the world that keeps him above life. It is the Blue that grabs him as a buoy at first, as a symbol to parade, afterwards. The Blue remains in the painting as the abyssal ground of what does not exist, the Blue before it is painted and the absolute surface over which he maintains himself, of the Blue that is simply there, painting “the variable amplitude of my being in the world”. The painter that fears deep sleep, that is afraid of the abysses of the being that is not, of the being that sees himself everywhere as non-being, the world of those that without beauty are definitely grabbing the death that we can find everywhere in the world, such a painter tries to take from the painted Blue all the light that might guide him in the dark night of a world that is not, the light of a world that will be his own, a world that he paints and creates in contrast with the vulgar world that is dying everywhere.  He keeps himself in the studio observing the Blue that he painted and that seduces him and that is absolutely significant because he painted it, because with it he pulled a portion of meaning from an unreal world where nothing exists, because with this gesture of painting the Blue he created a crucial turning point from death to life, from the non-significant to the significant, from the material to the spiritual, from the sterile to the creative, etc. He deeply debates with the struggle between nothingness and affirming truth, since the Blue is nothing more than a portion of sensation or a “vital significance” or a “kind of behavior” (Merleau-Ponty). May the Blue hold that world that is being rebuilt under his sight… Reconstitution of the world means creation of another world, of a new world of which that Blue is just the beginning. He puts in that Blue all of the world’s future religion that is born in it. He sees in there a theology but also revolutions. He sees there the geography of new continents, the borders of new countries but everything in a single moment, the one of looking at the Blue he created, a world he recreated in awaken beauty. (…) The painter that affirms himself by denying himself, condition of the capitulating being, that falls asleep with everyone else, which sinks in the unconsciousness of a world where everyone is asleep. Painting will always come back to that other awakened world towards which we walk. The perception is that way to the other world, but the solitude of the painter is his unfinished humanity which sleeps in an unending painting.

J.V.