2009

A AURA (uma introdução)

240px-Klee,_paul,_angelus_novus,_1920

Paul Klee
Angelus novus
1920
óleo e aguarela sobre papel
31,8 x 24,2 cm

Porque existe alguma coisa, o ente em vez de Nada? A pergunta impõe-se poderosa: porque existe pintura em vez de Nada? Qual a minha relação com a pintura, as minhas motivações, as minhas aspirações? As pinturas são momentos, fragmentos do tempo que circula em torno de mim. O vir ao quadro do acontecimento é o vir ao quadro do tempo: isto reflete o seu lado existencial: toma-se a existência como o movimento circular do tempo que, por um breve momento aflora, através da acção, uma superfície, um suporte. O tempo é a preexistência do acontecimento, a sua causa: registar num quadro um acontecimento é registar um momento do tempo. O tempo flutua e passa por mim e eu registo-o num plano de imanência, um plano de intimidade, de interioridade: o quadro é a reprodução o mais exata possível desse plano interior.
Porque se pinta? O mais correto seria perguntar-me: quando pinto? Penso e sinto a Modernidade que é a quebra com a tradição da representação, com o pintar a partir da natureza do que se vê, do visível, com o pensamento clássico. Porque o Modernismo substitui a representação pela expressão: na designação de expressão cabem muitas coisas: o seu caminho é o do ilimitado, o do horizonte móvel do plano de imanência. Pintar é sempre projetar, é sempre um movimento de dentro para fora, do plano de imanência para o suporte: o plano adquire assim um tom de dúvida, de duvidar que acertámos exactamente no que queríamos: esta ou aquela motivação, este ou aquele sentimento. Sentir, como Schopenhauer, a vontade do mundo que passa por mim, sentir a aura que de mim desponta, que eu fixo no quadro, a aura que agarra o sujeito e o observador.
A aura está sempre presente nos meus quadros como conceito. Ela existe dentro e fora, vai e vem, da profundidade do quadro à minha profundidade e depois volta, devolvida. Gostaria de esclarecer que a aura, tal como eu a concebo, não é uma entidade meramente espiritual e volátil, algo que surja como luz a partir de um centro: a aura é algo que se constrói com o tempo e nesse plano existencial, se constrói ao lado do quadro. Mas a aura é também uma forma. Gostaria de sublinhar o lado material da aura, o seu lado manipulável: algo que pertence ao mundo da prestidigitação. A aura é algo que vem de algum lado e que eu recupero para, manipulando-a, depor na pintura. Nesse caso trata-se de algo que eu transmito aos meus quadros e que quero transmitir através deles. Ela captura-os através de uma distância, que é a distância da imagem poética e do mistério. A aura é algo que se manipula porque não vive do imediato: a distância do tempo é a distância existencial: conviver com um quadro significa conviver com a aura do mesmo – a aura penetra na existência.
Como aprisionamento do tempo e como escrita ou linguagem automática, a aura é sempre um fragmento do tempo. Como fragmento ela coloca-se de duas maneiras: despontando de si (o quadro como fonte inesgotável de espiritualidade, como matéria rica) e sem centro em si (o quadro como desvio, distância em relação ao seu observador). A aura vale-se do tempo presente e da memória, ela é o vestígio da arte, o que se recupera do quadro, a sua permanência na existência de quem observa. O fragmento possui a cumplicidade do resto, o resto é aquilo que ele não é, é a sua totalidade. O resto é a realidade que o fragmento combate, o fragmento é o núcleo. Neste sentido podemos falar de poesia, a voz do silêncio, a arte de significar.
Nos meus quadros pretendo fazer significar ou, como diz Valéry: “Que quis dizer? Traduzir-se-ia melhor por: que quis fazer?” A influência é uma construção no tempo, nessa medida ela é aural, nem me antecede nem me precede. Se a penso, modifico-a no imediato do pensado. Nesse sentido não copio mas liberto a influência da cópia, ou seja, controlo e liberto a sua aura. A influência é a distância daquilo que é aura. Todas as coisas possuem a sua significação que é o lado material da aura. Mas tal como cada quadro em si é diferente, também a aura se manifesta de diferentes formas. O processo da minha pintura é um processo de seleção da aura da influência . Reúno na minha pintura um conjunto de significações, o que quer dizer que reúno um tipo de aura e materializo a forma dessa aura. A pintura impõe-se sugerindo: eu acrescento aos objetos do mundo um tipo particular de aura. Porque nem todos os objetos nos atraem, nem todos os objetos têm, para nós, aura. Cabe a quem vê descobrir-lhe a aura que nasce da convivência, da situação existencial de cada um.

J.V.

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THE AURA (an introduction)

Why is there something instead of Nothing? There is a powerful question to be posed: why is there painting instead of Nothing? What is my relation with painting, my motivations, my aspirations? Paintings are moments, fragments of the time that circulates around me. The coming to the painting of the happening is the coming to the painting of time: this is reflexive of its existential side: we take existence as the circular movement of time that, for a brief moment  arises through action, at a surface , at a support. Time is the preexistence of the happening, its cause: to register a happening in a painting is to register a moment of time. Time floats and passes through me and I register it in an immanence plane, a plane of intimacy, of interiority: the painting is the most exact reproduction we can put forward of that interior plane. Why do we paint? The most correct would be to ask: when do I paint? I think and feel Modernity, which is the break with the tradition of representation, of painting from the nature we see, of the visible, of classical thought. Because Modernism replaced representation by expression: in the designation of Expression many things can fit: its path is the unlimited, the movable horizon of the immanence plane. To paint is always to project, it is always a movement from the inside to the outside, from the immanence plane to the support: the plane acquires, then, a tone of doubt, of doubting that we got right exactly what we wanted: this or that motivation, this or that feeling. To feel, as Schopenhauer, the will of the world that passes through me, to feel the aura of what in me is being born that I affix to the painting, of the aura that grabs the subject and the observer. The aura is always present in my paintings as a concept. It exists inside and outside, comes and goes, from the painting’s profoundness to my own and then back again, returned. I would like to make clear that the aura, as I see it, is not a merely spiritual and volatile entity, something that is built with time and in the existential plane, built to the side of the painting. But the aura is also a form. I would like to underline the material side of the aura, its manipulative side, something that belongs to the world of prestidigitation. The aura is something that comes from somewhere and that I recover, so that, by manipulating it, I put it on painting. In that case it is something that I transmit to my paintings and that I want to transmit through them. It captures them through a distance, which is the distance of the poetic image and the mystery. The aura is something  that is manipulated because it doesn’t live from immediacy: time’s distance is the existential distance: to coexist with a painting means to coexist with its aura – the aura penetrates existence. As the prison of time and as writing or automatic language, the aura is always a fragment of time. As fragment it is placed in two ways: by desponding from itself (the painting as inexhaustible source of spirituality, as rich matter) and without a center in itself (the paintig as detour, distance from its observer). The aura feeding from present time and memory, it is the vestige of art, what is recoverable from the painting, its permanence in the existence of the one observing it. The fragment holds the complicity of what’s left, the rest is that which the fragment is not, it is its totality. The rest is the reality with which the fragment fights, the fragment is the core. In this sense we can speak of poetry, the voice of silence, the art of meaning. In my paintings I pretend to create meaning or, as the poet Valéry says: “What did he mean? Would be better translated by: What did he want to do?” The influence is a construction in time, in this sense it is aural, it is not before me or after me. If I think about it, I modify it in the immediate of the thinking. In that sense I don’t copy but set the influence free from the copy, that is, I control and set its aura free. The influence is the distance of that which is aura. All things have its meaning which is the material side of the aura. But in the same way that each painting is a different painting, so too the aura manifests by different ways. The process of my painting is a process of selection of the aura of influence. In my painting I gather a set of significations, which means that I gather a type of aura and materialize the form of that aura. The painting imposes itself by suggesting: I add to the objects of the world a particular type of aura. In the same way that not every object is attractive to us so does not every object have, to us, an aura. It is up to the one who sees to discover the aura that is born in coexistence, in the existential situation of each one of us.

J.V.